Drogas:
destino de uma ilusão? *
Henrique
Senhorini
outubro
2012
Do
que se trata?
Esta
palestra sobre as drogas tem, como propósito, fazer pensar,
questionar,
discutir,
tocar e sentir-se tocado pela palavra sobre a problemática que o
tema
drogas
traz a tona....sem dissimulação, sem rodeios e com um mínimo de
pré-
conceitos possíveis.
Quem
sabe, fazer disso – do que iremos falar aqui – algo que possa, de
certo modo, provocar uma reflexão, exercitar o pensamento sobre o
uso e abuso que se apresenta
sob vários contextos, textos e pretextos. Com o intuito de adquirir mais
recursos, mais ferramentas para enfrentar os previstos, im-previstos,
os casos e a-casos, que transitam com a droga.
Mas,
hoje vamos falar somente das drogas ilícitas e não prescritas.
Vamos falar das drogas que não se acham à venda nas prateleiras das
drogarias oficiais, legais... Vamos discutir aqui, nessa palestra,
sobre o crack, cocaína e não sobre as outras “ínas” como as
ritalinas, anfetaminas e “etcetaraínas” que podem causar o mesmo
efeito e resultado: a escravidão !!!
E
para me auxiliar nesse trabalho, tenho a psicanálise como pilares do
meu
pensamento
teórico.
Bom,
após essa breve introdução, começo a palestra com uma questão
que sempre surge
quando o tema é droga:
–
Por
que alguém se torna um drogado? (Burroughs)
Essa
questão provoca uma outra que considero mais interessante ainda:
–
Será
que alguém acorda num belo dia decidido a se tornar um drogado?
Para
facilitar o desenvolvimento de uma hipótese que essas questões
suscitam –
de
como alguém pode advir um drogado – vamos pensar em TEMPOS –
como propõe
Giulia Sissa, para auxiliar na nossa caminhada.
Pois,
contar a história de um hábito, de um vício, de uma regularidade
que se faz cada
vez mais repetitiva, significa procurar os momentos de
descontinuidade e, aí, mais questões se levantam:
–
Quando
o ritmo – marcado nos primeiros encontros com a droga – assume
outra
cadência?
–
Quando
os dias começam a se estruturar em função de uma única
preocupação
? pré-ocupa-ação
–
Quando
a alternância entre períodos com e períodos sem se torna
ingovernável
/ incontrolável?
–
Quando
o prazer se torna um analgésico para a vida?
E
de um modo mais retrospectivo, outra questão emerge:
–
Quando
foi que tudo começou?
Os
Tempos da Droga :
O
Tempo de Atração
Geralmente,
quando se chega a adolescência, muitas fantasias a respeito das
drogas
surgem na cabeça daquele jovem. Na maioria das vezes são fantasias,
aliada
a curiosidade – pois provavelmente já ouviu alguém comentar que
foi legal, maior
barato, rolou isso e aquilo – que de certo modo favorece e até
mesmo incentiva
o famoso: “só vou experimentar”.
E
isso se dá por mais diversos motivos, seja para não ser taxado de
neerd ou para se
aproximar de uma garoto, ou garoto, para ser aceito numa determinada
galera descolada,
ou para fazer parte da temida galera do mau, visto que essa também
tem seu charme, prestígio, status, ou por ouvir falar que se fica
mais descontraído, extrovertido, falante, circulante, sem a vergonha
que o caracteriza, etc...
Aí,
quando menos se espera – sem querer querendo, como diz o personagem
mexicano
Chaves, o jovem se vê diante dela – da droga. Eis a oportunidade,
afinal, será
só um peguinha, só uma cafungada, só pra ver como é... e isso não
tem nada de mais – pensa o jovem. E lá vai ele ter seu primeiro
encontro com a droga. Um encontro “casual”, como preferem
acreditar.
O
Tempo do Enamoramento
– o período
cor-de-rosa da relação
Após
o primeiro encontro, após inaugurar a marca dessa experiência no
sujeito e de
se inscrever na sua subjetividade, o usuário é movido pela força
de atração que a droga exerce, pois ela detém um poder de sedução
fortíssimo que, por subestimar
esse poder e por supervalorizar o poder de seu controle sobre si mesmo,
o iludido segue nessa batida.
Só
para agregar, o poder de sedução da droga pode ser comparado
àquele do canto das sereias de Homero:
Homero,
descreve em seu poema épico “Odisséia”, o perigo que Ulisses
enfrentou ao navegar no Mar Egeu, no seu regresso a Ítaca, sua
pátria, depois da batalha de Tróia. Ninguém podia escapar
com vida após ouvir o maravilhoso canto das sereias. Elas exerciam
um poder irresistível
sobre seus ouvintes, que, inebriados, se atiravam nas águas e nunca
mais voltavam.
Ulisses - herói da mitologia grega e símbolo da capacidade humana de superar adversidades - resolveu
conhecer esse canto, sem contudo colocar em risco sua vida. Era homem
conhecido por
sua valentia, prudência e esperteza. O ardil do cavalo de madeira
garantiu-lhe a vitória em Tróia.
Estava disposto ao confronto. Então ordenou aos seus marujos que o
amarrassem ao mastro
do seu navio para que pudesse ouvir o canto mortal. Os marujos
taparam os ouvidos com
cera. Assim, o marido de Penélope e seus companheiros atravessaram
sem perigo aquele pedaço
de mar, ouvindo o maldito canto.
Portanto,
o que não passou de uma eventualidade, de um encontro furtivo, de um acaso,
de uma contingência, segue por um período de felicidade e de busca repetida
do prazer experimentado. Uma busca recompensada positivamente e generosa.
A descoberta do prazer que a droga proporciona, a descoberta da euforia,
da sensação de se estar no topo do mundo, de ser sem limites, de
gozar uma fantástica plenitude inesgotável e tudo isso a um preço
baixo, barato e a venda em quase todas as esquinas da vida cotidiana
embaladas em pacotinhos que se transformam em fontes de alegria de
bolso, leva a pessoa – na maioria das vezes – a transformar os
“encontros casuais” em compromisso.
Um
compromisso que se cumpre com pontualidade, sem atraso e que
corresponde inteiramente
à expectativa... A famosa “sexta-cheira”, como muitos dizem.
Por
favor gente; não subestimem o poder de sedução da droga, pois o
apelo é
muito
forte e a promessa de felicidade é praticamente irresistível para a
os mortais seres sofrentes.
O
Tempo da Entrega
O
que acontece então? Bom, acontece que, nesse momento, o usuário
começa a pisar
mais fundo no acelerador. A candência aumenta a um ritmo que se
aproxima ao
da música eletrônica....aquele tipo bate-estaca.
A
sexta-cheira se transforma em final de semana completo....
Pra
quê só as sextas se posso “esticar” um final de semana inteiro?
Pensa o incauto. E isso sem falar das RAVES (vários dias de balada),
com suas drogas sintéticas e extasiantes – o famoso Esctasy,
conhecido, também, como a droga do amor.
Será
isso que procuram? Amor?
Isso
não deixa de ter uma certa lógica: a lógica da droga, de quanto
mais prazer, melhor.
Mas,
não pára por aí não.....a lógica continua...o sujeito amplia seu
final de semana, que
agora começa na quinta. E o tempo de basta se distancia cada vez
mais.
Com
a sequência começam também as consequências....O usuário percebe
que ele já não está tão legal, que o uso da substância não
produz o mesmo efeito....aquele das primeiras vezes. E encarar a
segunda-feira torna-se uma tarefa cada vez mais difícil de ser
realizar sem a ajuda de um aditivo......
Mesmo
assim, insiste e persiste, pensa e se ilude: quem sabe da próxima eu
me acho
mais e aquele sensação primeira re-aparece....Também, possui a
certeza que está
no controle....que tem poder de decidir parar de usar na hora que bem escolher,
na hora que quiser. Esse é um discurso pronto que o usuário –
antes eventual
– utiliza para se enganar... e também enganar os outros...Santa Ingenuidade,
diria o Robin do Batman. Tolinho, no mínimo.
A
ressaca, a Rê-Bordosa, a depressão pontual, a culpa superegóica
que lhe cobra sem
sessar: tu deves ! Tudo isso torna-se um fardo pesado no dia
seguinte.
“Haja
hoje para tanto ontem” como já escutei na clínica.
A
vida do sujeito que já não estava lá aquela coisa, transforma-se
em insuportável..
E,
então, o que já estava transbordando, vaza de vez.....
Aquele
“tu deves” agora não está mais só....se apresenta acompanhado
de uma nova ordem imperativa: “pagarás com mais drogas a tua
dívida!”
E
é o que ele faz para tentar não pensar no que sua vida está se
transformando... e também para tentar evitar o inevitável: a culpa.
Nesse
momento, fazer uso da droga deixou de ser uma demanda de amor para se transformar
em pedido de necessidade....para dar conta de sua vida miserável.
Para
dar conta das dificuldades do mundo, do Outro, do seu superego cruel
e
tirânico....da
dor de viver, da depressão que se anuncia.
O
que fazer? ..se pergunta o infeliz.
A
resposta pronta vem de imediato: mais droga. A alegria do início se
transformou
em um imenso descontentamento, numa tristeza pura.
O
Tempo da Escravidão
É
quando a droga toma posse, tornando-se o senhor absoluto do
ser-do-ente.
E
numa tentativa desesperada de sair do desprazer que a vida sem a
droga e ainda buscar aquele prazer das primeiras vezes de uso – que
deixou uma marca – o sujeito
repete e repete e repete cada vez mais seus encontros com a droga,
quase que num contínuo. A repetição parece ser a o elemento-chave
que introduz o sujeito na escravidão. E o que determina tal
insistência é julgado da ordem do imponderável, do indeterminado.
De ato-em-ato o corpo e o sujeito – este cada vez mais eclipsado
pela droga – não podem mais dizer sim ou não. Trata-se de um ato
não mais calculado que irrompe na cena da existência. Repeti-lo se faz necessário.
Se
há prazer, bem estar, dor, sofrimento...já não importa mais. O
sujeito que
começa
a sair de cena não dirige mais sua vida. E a carne – é nisso no
que se transforma o corpo - um monte de carne autônoma (lembrando um
zumbi) – começa a dar sinais que não está bem.
O
que entra em cena, no lugar, são episódios de confusão mental,
manifestações desfuncionais, diminuição na eficiência dos atos,
menor interesse no trabalho, opacidade sexual. Os laços sociais
ficam cada vez mais reduzidos e frágeis.
A
vida vira uma quase nada – uma miséria vital (Daniella Castiglia).
A droga tomou o lugar dos desejos, das relações, do amor, da
família e dos outros objetos. Tornou-se cotidiana nesse corpo. Aos
poucos, como uma traça, a droga corroendo o que vê pela frente.
As
doenças vão surgindo, os órgãos despedaçando-se e o sujeito se
apagando.
Não
existe nem passado, nem futuro que se possa sustentar. Apenas o
presente que
a droga oferece....”só mais uminha”, diz o que ainda sobrou do
ser numa tentativa insana de controlar o seu descontrole....
Em
alguns episódios de lucidez percebe que nunca teve controle de nada,
está a mercê
da droga, totalmente entregue. A droga se apossou do ser-do-ente.
A
armadilha montada por si mesmo o fez cair a cada grama de pó, a cada
pedra de crack,
a cada pico de heroína, a cada pílula de felicidade....
E,
como consequência, tudo cai. Cai o trabalho, os laços sociais, a
família, a dignidade, a subjetividade. Por fim, cai o corpo. O que
começou como promessa de prazer, de completude – na qual o usuário
acreditava que podia escolher quando e como parar de se drogar –
tornou-se agora uma conduta necessária para qualquer tipo de ato. É
difícil falar de sujeito do inconsciente em tais circunstâncias,
visto que esse encontra-se agora tão tamponado, tão eclipsado, que
o que se vê é só um corpo que cai....e este é pura droga e mais
droga é só o que lhe interessa.
A
busca tornou-se o exercício supremo....só lhe restou está opção.
A
obediência ao encontro com a droga segue agora o modelo do instinto.
A droga tomou o perfil de algo insubstituível, como o oxigênio que
respira.
Tomou
o perfil de um senhor feudal cruel, tirânico do prazer cuja voz
imperativa diz: GOZA!!! Por fim, o processo de escravidão está
consumado.
Tratamentos
Segundo
a O.M.S., o Homem é um ser bio-psico-social-espiritual
Esta
definição aponta clara e indubitavelmente que o profissional de
saúde deve estar
conveniente e adequadamente preparado para trabalhar todas as
dimensões existenciais
do ser humano e da vida humana. Portanto, no caso da toxicomania, exitem
vários tipos de tratamentos como, por exemplo, o medicamentoso, o comportamental,
o de auto-ajuda, o religioso, o psicanalítico e outros.
Mas, o mais importante
é não ficarmos reduzidos a uma visão dicotomizada: CORPO X MENTE.
Sobre
esse aspecto, penso numa frase de um autor que me auxilia no meu
posicionamento:
“Se não há humanos sem as características biológicas, também não
há humano sem a palavra sem o Outro.” (L.Althusser)
Por
isso, não acredito numa prática ortodoxa, numa terapêutica
engessada, que reduz
os pontos de vista diferentes e empobrece a discussão. Aposto na
multi e interdisciplinaridade.
Todas podem dar a sua contribuição, permanecendo no seu próprio
campo. E se há escolhas, não há uma só verdade – como diz
MRKehl.
Logicamente
tenho minha opinião a respeito da eficácia das terapêuticas
disponíveis
– até da não muito famosa/conhecida, Redução de Danos que,
particularmente,
acho muito interessante.
Penso
que todas podem dar um tipo de contribuição, mas, tenho mais
restrições as de auto-ajuda, tipo AA – nesse caso, NA – que
fixam e reduzem o sujeito a uma identidade: sou Sicrano toxicômano,
sou Fulano dependente químico. Pois ao pronunciar “eu sou
toxicômano” ele não pensa. O “eu sou” recobre o “eu penso”
havendo uma neutralização de toda troca simbólica.
Também
tem aquelas que tentam tirar a responsabilidade do sujeito de sua
desgraça,
como os que se apoiam unicamente na genética (culpa do gene, do
DNA), aquelas
que creditam a conta somente no encosto, nas más companhias, etc... esquecendo
da historicidade do sujeito e sua implicação com seu estado e “companhias”.
Mas, enxergo que - em alguns casos e de acordo com a situação –
se faz
necessário uma intervenção mais enérgica como, por exemplo, a
internação involuntária
– compulsória, para uma clínica ou hospital de psiquiatria.
Vejam, somente
para a pessoa poder atravessar um momento crítico com mais
segurança. Lembrem
que eu sou psicanalista e como tal, meu campo é o da palavra.
E
para que esta esteja presente é preciso que haja um sujeito (do
inconsciente).
E
sobre a abstinência, entendo que esta é muito mais nossa do que do
toxicômano,
que passa por esse processo com muito sofrimento, desorganização
psíquica, fragilidade subjetiva.... e para ajudá-lo a atravessar
esse sofrimento brutal, muitas vezes, a entrada dos fármacos no
tratamento são bem vindos.
Retornando,
a abstinência é mais nossa porque somos nós que devemos dar conta do
nosso “furor sanandis” (obsessão de curar o paciente a qualquer
custo). Portanto, suportar as recaídas e outras atuações como os
actings-outs, por exemplo, do ser sofrente é parte do processo
terapêutico.
Pois
não devemos nos esquecer do que está realmente em questão se: é o
número de dias que o paciente não faz uso das drogas ou o que leva
ele a buscar e usar a droga. E para tentarmos nos aproximar da causa e
não do sintoma (não se prendendo no efeito sinto-mal), precisamos
disponibilizar a escuta no quê está sendo colocado no ato de se
drogar e para quê...
Para
a medicina, o sintoma é sinal de doença.
Para
a psicanálise o sintoma é uma metáfora – é o substituto da
doença.
Só
existe quando algo falha.
Para
tanto, insisto, é preciso escutar a droga como agente de uma função
psíquica e escutar o que está em jogo no ato de se drogar:
Trata-se
de uma demanda de amor?
De
um pedido de reconhecimento? Visto que é preciso mostrar-se onde a
palavra fracassa?
De
um ato transgressor? E se for? Trata-se de uma perversidade
sadomasoquista
contra
si mesmo? Trata-se de uma estrutura clínica perversa? Ou de
transgressões
adolescentes como forma de protesto cultural, contra as normas do
Pai: o Pai da Lei simbólica?
Trata-se
de uma tentativa de realizar um ideal narcísico de auto-suficiência?
De um
auto-erotismo?
Trata-se
de um tipo de relação com o objeto? De um sintoma?
De
uma forma de gozo? A droga seria a escolha do gozo contra o amor e o
desejo?
Bem,
a proposta da psicanálise é a de tentar fazer uma leitura do
sujeito que
sofre.
Por
isso tratamos da miudeza, do quase todos são iguais....tratamos do
quase,
do quase sou feliz. É como diz Karin de Paula, a psicanálise trata
da miudeza, do varejo.
Somente
assim poderemos dar uma direção ao tratamento em relação a cura.
Uma
direção que restitua ao sujeito “suas próprias” condições
subjetivas, que resgate seu ideal e o viabilize a se autorizar e
assumir frente ao que diz, remetendo-o às suas próprias palavras e
apontando para o que evidencia como índices de seu desejo.
Concomitante,
haveria um trabalho de luto do lugar vazio deixado pela droga, onde o
sofrente depositará vários de significantes demonstrados na
descoberta, na invenção, ou na recuperação de interesses, tais
como: afetivos amorosos,
familiares,
profissionais, acadêmicos, esportivos, artísticos,
comunitários,.... entre tantos.
É
um trabalho de construção em análise. De re-significação da
palavra e da posição subjetiva que permitirá o sujeito falar em
nome próprio, para que uma pergunta a ele se formule: Qual a tua
participação na desordem da qual se queixa?
E,
através de um estímulo para essa construção, surgirá a
possibilidade de se colocar uma outra música para tocar do que
aquele bate-estaca (que tal um reggae?)..
Surgirá,
também, a possibilidade de se re-inventar...de modificar o circuito
pulsional, a forma de gozo, o sintoma....Novamente com Karin de
Paula: é da psicanálise transformar um sofrimento brutal em uma dor
banal !!!
A
Psicanálise e a Toxicomania
A
psicanálise tem uma “relação” com a questão droga desde a sua
criação. Isto se deu
a partir do envolvimento do próprio Freud com a cocaína ocorrido
numa fase que muitos
a chamam de pré-psicanalítica.
Gostaria
de relembrar a radical transformação por que passaram a opinião e
o
julgamento
do próprio Freud a esse respeito: mais especificamente, em relação
ao consumo
de cocaína.
De
acordo com Raul Pacheco, na penúltima década do século XIX (década
de
1880),
Freud investigou o potencial terapêutico da cocaína. Aquilo que se
iniciou como
um moderado interesse intelectual por um assunto, análogo ao que usualmente
se encontra em boa parte dos trabalhos científicos, transformou-se rapidamente
em um evidente entusiasmo pela droga, tanto como cientista, quanto como
consumidor habitual. Isso chegou a ponto de ele vir a considerá-la
uma “droga
mágica”, com
prescrições que abrangiam da indigestão e do catarro gástrico
à depressão e melancolia.
Além
de consumi-la regularmente, recomendava-a a amigos e à própria
noiva,
Martha
Bernays, “a fim de
fortalecê-la e dar um tom vermelho às maçãs do seu rosto”.
Para ilustrar,
apresento um recorte de Uma carta de Freud para Martha Bernays,
de 1884, na época em que preparava uma publicação sobre os efeitos terapêuticos
da cocaína, deixa transparente a excitação que o invadia:
“Ai
de ti, minha Princesa, quando eu aí chegar. Beijar-te-ei até que
voltes a ter as
tuas
cores rosadas, e alimentar-te-ei até que estejas roliça. E se te
mostrares
rebelde,
hás de ver quem é o mais forte - uma gentil senhorita que não come
o
bastante
ou um grande brutamontes selvagem que traz cocaína no seu corpo.
Durante
minha
última depressão grave tornei a valer-me de cocaína e uma pequena
dose
levou-me
às alturas e de maneira maravilhosa. No momento encontro-me ocupado
em
colecionar
a literatura necessária a um canto de louvor a essa mágica
substância.”
Sabemos
que Freud teve que recuar em relação a essa opinião favorável
sobre a cocaína
e conhecemos as drásticas conseqüências do seu engano para os seus próprios
clientes e para o seu amigo íntimo Ernst von Fleischl - Marxow, que
o encheram
de culpa e remorsos e lhe renderam graves censuras das comunidades médica
e científica, na época. E sabemos também da intensidade dessa
culpa, pela freqüência
com que compareceu ao conteúdo latente dos sonhos de Freud, entre os
quais o famoso “sonho da injeção de Irma”.
Compare-se,
além disso, a sua opinião inicialmente favorável sobre a cocaína,
na década
de 1880, com a posição a respeito das drogas que ele vai assumir
posteriormente,
conforme se pode constatar em “O mal-estar na civilização”, de 1930.
E aproveitando o gancho...
Trata-se
de uma questão social?
A
droga é um sintoma social?
Muitos
pensam que sim.
Vamos
relembrar algumas opiniões de Freud, em “O mal-estar na
civilização”,
sobre
o sofrimento, suas origens e os meios pelos quais os seres humanos os
enfrentam
e também sobre as drogas, de modo a podermos balizar alguns pontos importantes
que auxiliem a análise das relações entre o consumo de drogas e aspectos
da cultura e da sociedade contemporâneas.
Segundo
Freud, a vida é árdua demais para nós e nos proporciona muitos
sofrimentos
e decepções, além de exigir-nos tarefas impossíveis. Para
suportá-la, os
indivíduos lançam mão de três tipos de medidas:
1-
satisfações substitutivas, como a Arte a Literatura, por exemplo,
que se revelam psiquicamente eficazes, devido ao papel da fantasia na
vida mental;
2-
derivativos poderosos, como o é a própria atividade científica,
que nos fazem extrair
luz de nossa própria desgraça;
3-
substâncias tóxicas, que influenciam nossos corpos e nos tornam
insensíveis aos
nossos sentimentos.
Mais
tarde, a religião, entra nessa lista como mais uma medida para
suportar o sofrimento.
Freud,
nesse momento, está com a questão do propósito da vida humana.
Esse propósito,
enquanto evidenciado pelas ações das pessoas, consiste em obter felicidade,
o que as orienta na direção de dois objetivos fundamentais:
1-
evitar o sofrimento e desprazer;
2-
a busca de prazer.
E
conclui: “Como vemos, o que decide o propósito da vida é
simplesmente o
programa
do princípio do prazer e esse domina o aparelho psiquíco desde o
início.” (a
ironia é que o princípio do prazer, na realidade chama-se princípio
do prazer e desprazer).
Bem.... O
propósito da vida humana rege-se, então, pelo “princípio
de
prazer”,
ainda que ele não tenha possibilidade alguma de ser executado, já
que todas
as normas do universo mostram-se-lhe contrárias: “a
intenção de que o homem
seja feliz não se acha incluída no plano da Criação.”
Mas,
retomando ao pensamento freudiano, a felicidade em sentido restrito -
satisfação
de desejos recalcados em altíssimo nível - só é possível
enquanto
manifestação
episódica.
E
a infelicidade, muito mais frequente, vem-nos de três direções:
1
- o nosso próprio corpo, condenado à decadência e dissolução.
Leiam velhice e morte;
2
– a magnitude da natureza, que pode voltar-se contra nós com
forças de
destruição
esmagadoras e impiedosas;
3
- a sociedade e a cultura que nos impõe limites (é bom lembrar que
a matriz é a família)
Não
é à toa que, com tantas possibilidades de sofrimento, a maioria das
pessoas tenha
moderado as suas reivindicações de felicidade e as tenha posto sob
vigência do mais modesto “princípio
de realidade”. Este coloca a eliminação do sofrimento em primeiro
lugar, à frente da obtenção de prazer.
-
Bem, podemos dizer: …...isso foi naquela época, na qual o mundo
encontrava-se inserido
numa cultura fortemente rígida e restritiva que se opunha à
satisfação das
pulsões sexuais e agressivas, mas, agora é diferente, agora estamos
numa época de liberdade individual onde podemos nos expressar
abertamente nossas opiniões (o politicamente correto é mais uma
forma de controle?) liberdade na escolha sexual, dos laços sociais
virtuais, época da alta tecnologia, dos satélites on-line que nos
informam – com antecedência - sobre a natureza, sobre os furacões,
tsunamis e terremotos, da medicina estética que nos deixa mais belos
e jovens, dos fármacos,que melhoram nosso humor... Ah !!! A vida
agora tornou-se muito mais fácil, sobra mais tempo para gente
desfrutar, gozar da vida.
E
aí.....Alguém realmente acredita nesse meu raciocínio? É assim
que se sentem?
É...nem
eu...visto que nós nos encontramos - hoje – numa sociedade que já
foi batizada de espetáculo, narcísica, individualista...
-
Numa sociedade onde a liberdade individual assume valor máximo e
prazer é especialmente consagrado....principalmente o imediato
-
Numa sociedade onde a Lei de Gerson encontra eco nos que a legitimam
e o discurso “quero me dar bem” permeia todos os patamares
sociais...
-
Numa sociedade que privilegia a satisfação imediata, que tenta de
todos os
modos
suprimir a dor.. Num lugar em que a tristeza é entendida como
depressão (anti-produtivo),
fraqueza... que desafina os coros dos contentes... dos possuidores do
NEXTEL (esse é meu mundo)
-
Num lugar no qual nem a dor do luto é respeitada, pois o “show não
pode parar”
-
Num lugar onde o discurso do capital impera e onde os que não
correspondem são
taxados de fracassados e colocados à margem.. são marginalizados e
excluídos e vistos até como seres de menos valia.
Pois
é ...E isso tudo vai se tornando insuportável e incitando a saídas
menos elaboradas, a respostas de caráter imediatista e absoluto como
o recurso às passagens ao ato, como oferece, por exemplo, uso das
drogas - um pacotinho de felicidade a venda até no sistema
delivery....disk-drogas
Mas,
isso está coerente com o discurso capitalista....Compre isso que você será feliz, compre aquilo que você sentirá a satisfação de
viver....use botox p/ manter-se sempre
esticado....faça plástica e mude o guarda roupa para se parecer
como teu filho, como um jovem...
Sinta-se
“No Limits” compre X...e por aí vai..... bombardeio e mais
bombardeio por parte
da mídia, uma constância, sem tréguas que faz o sujeito acreditar
e se iludir.
E
nada representa mais esse discurso do que o objeto droga...
Trata-se
de uma indústria que movimenta bilhões, trilhões de dólares por
ano no mundo inteiro.... e pra quê?
Será
que é para suprir as carências de milhões de consumidores que
buscam fugir de suas realidades a qualquer preço, ou no mínimo,
buscam evitar o desprazer....
Como
nos alerta Melman, “a sociedade capitalista sustenta como ideal o
consumo, e ignora que é o toxicômano que o realiza plenamente.”
E
a fidelidade do drogadito ao seu objeto de consumo mostra, na sua
forma mais pura
e radical, a adesão a uma relação com o mundo fundamentada na
busca de realização
da existência pela via do consumo:
“O
toxicômano representa de alguma maneira, o ideal do discurso
capitalista, um sujeito que consome a mesma coisa durante anos, a tal
ponto que de sua prática, ele se torna aquele que sustenta um modo
de pensar: ‘o homem moderno’.”
Se
o estilo existencial do drogadito não pode ser considerado
incoerente com a lógica
do capitalismo, muito menos o poderia ser a racionalidade subjacente
ao negócio
que lhe fornece o seu produto - a produção e o comércio das drogas
- como
podemos deduzir das análises de Karl Marx:
“O
capital foge dos tumultos e das disputas, ele é tímido por
natureza. Isso é verdadeiro, mas não
é toda a verdade. O capital detesta a falta de lucro, ou um lucro
muito limitado, tanto quanto
a natureza tem horror ao vácuo. Se o lucro for conveniente, o
capital se torna corajoso; com
10% assegurado, vai a qualquer lugar; com 20%, se acalora; com 50%,
torna-se temerário;
com 100%, esmaga sob os seus pés todas as leis humanas; com 300%,
não há crime
que não ouse cometer, mesmo arriscando o patíbulo. Quando a
desordem e a discórdia trazem
lucros, ele encoraja a ambas. Querem uma prova ? Eis o contrabando e
o tráfico negreiro”.
E
a droga, com seu escravismo, com seu tráfico é a mias moderna
tradução desse pensamento
de Marx.
Não
é surpreendente, portanto, que para muitos indivíduos, atualmente,
a droga seja
“(…) utilizada como tentativa de inscrição de uma identidade”
Ah
!!!!!!! …..Mas, “peraí” , diz alguém, .....ainda tem a
família, né?
Bem,
de acordo a Elisabeth Roudinesco, a família está em desordem...e eu
concordo.
Principalmente no que refere daquele que teria como função, a
paterna, como
representante da Lei, dos Limites, parece-me que quem deveria fazer a função
PAI, perdeu seu poder fálico, ou melhor, ficou reduzido a quantidade
de dinheiro
que tem no banco, no bolso. A impressão que dá é a de que se não
se tem dinheiro não tem valor, não tem poder e sem isso não dá
para legitimar a Lei.
Como
conseqüência, aparecem falhas nessa, nossa Lei. Aparecem furos onde
tudo se pode, tudo é permitido.
POR OUTRO LADO...
Trata-se
de uma questão individual?
Lembremos
da frase de Collete Soler: para a psicanálise quase todos são
iguais.
E
a psicanálise se dedica ao quase.
Voltando
a Freud, para evitarmos os sofrimentos e alcançar a felicidade
escolhemos
algumas vias, das quais ele considera:
-
a aniquilação dos nossos próprios desejos, por meio de alguma
prática de
extremismo
religioso
-
a reorientação dos objetivos das pulsões para evitar frustrações.
É este o caso das
sublimações, como ocorre, por exemplo, na produção de obras de
arte ou qualquer outro trabalho também pode classificar-se aqui,
quando não constituir apenas um meio de garantir a satisfação de
necessidades;
-
o abandono da realidade, através da loucura;
-
através da busca de “objetos
de amor” para os quais dirigir a pulsão libidinal.
Há
ainda uma outra via, A VIA DA DROGA...
Para
Freud, trata-se da via mais grosseira, porém a mais eficaz. A droga
tanto aumenta o prazer, quanto diminui a sensibilidade ao desprazer.
E oferece-se como um meio de atingir um alto grau de independência
do mundo externo e da realidade, proporcionando um refúgio em um
mundo próprio.
Eu,
além de concordar, dou meu pitaco: além de ser a mais grosseira,
considero também
como a mais burra das respostas que o sujeito poderia escolher.
Mas... e na atualidade? O que os - chamados por alguns - pós-modernos andam fazendo
para evitar o desprazer, a solidão, o desamparo, a angústia? Qual a
saída (leia-se
fuga) que se apresenta para evitar o sofrimento?
Bem,
diante do quadro que se apresenta na contemporaneidade, alguns - para suportar
o insuportável - escolhem a comida como objeto de desejo - seja no excesso
de tudo ou de nada visando tamponar o vazio existencial/constitutivo, como,
por exemplo, na obesidade mórbida, ou na anorexia ou bulimia. Outros elegem
o sexo, o álcool, o
jogo, o bingo das velhinhas, os shopping, os carrões, os sapatos
e bolsas “pradas” da vida, coleções das mais variadas (coleção
de namorada/namorado-
de esposas/esposos, de ficantes), trabalho em excesso – vide os
viciados em trabalho, os workaholics e etc...Mas, há também os que
elegem a droga, que para Freud, é a via preferencial – entre
outras citadas por ele - mais grosseira, porém a mais eficaz. Está
logo alí, bem perto e a dez real. Lembram?
A
droga tanto aumenta o prazer, quanto diminui a sensibilidade ao
desprazer.
É
bom deixar claro que não se trata de moralizar sobre o que é certo
ou errado e sim apontar as conseqüências das escolhas. Pois, a
ética da psicanálise respeita o sujeito em sua singularidade.
Porém, deve se basear no reconhecimento dos limites e na
incompletude do saber de si, para que cada um se responsabilize pelos
seus casos e acasos.
Isso
quer dizer que qualquer pessoa tem o direito de fazer e ser o que bem
entender,
desde que assuma as responsabilidades e as conseqüências de suas escolhas.
E
aí surge a pergunta que não se cala:
-
Por que alguns usuários tornam-se toxicômanos ou dependentes - como queiram
- e outros não?
Freud
ensina que depende da especificidade de cada sujeito e da
singularidade da interação
entre constituição psíquica e circunstâncias do ambiente e da
história de
cada um.
Bem,
colocando o contexto social como pano de fundo, penso que trata-se
mais de uma questão de relação. Do tipo de relação que o sujeito
tem com o objeto droga. Para os denominados os viciados - que fixam o
gozo ficando nessa posição de escravo - a relação com a droga é
de exclusividade.
Trata-se
de um empobrecimento da subjetividade, dos laços sociais, dos laços
afetivos, dos recursos psíquicos, da fantasia original, da dimensão
imaginária e simbólica. O objeto droga está colocado na posição
de objeto ideal.
E
isso, na minha opinião, ocorre com mais freqüência - entre os
usuários contínuos – quando há falhas, buracos abissais na
constituição e estruturação do sujeito. Falhas essas, decorrentes
em sua maioria, da função paterna, da Castração Simbólica (que é
a que interdita) e do Narcisismo.
Com
essas falhas o sujeito não consegue estabelecer as circunstâncias
nas quais se
pode suportar a falta.... o que falta.
Há
como evitar as armadilhas da droga?
Bem
! Trata-se de uma aposta, como tudo na vida....
Ulisses
apostou que seu mastro suportaria o peso de seu corpo amarrado a ele
eque
lhe daria sustentação na travessia perigosa, não cedendo ao canto
e encanto das
sereias....o que acabou ocorrendo: não cedeu.
Portanto
se cuidarmos e se possível aumentarmos o números de mastros
(mastros simbólicos) que poderão nos fornecer sustentação
psíquica ficará mais difícil ceder ao canto e encanto das sereias.
Um exemplo simples, porém não simplório, de mastro para os jovens
(que pode fazer um certa suplência na função paterna) seria o
esportes para as crianças...ou qualquer outra coisas que possa tomar
o lugar de importância na vida.
Mas,
como não temos o dom da adivinhação, que não temos garantias de
nada a priori (a não ser da morte) e que ficaremos sabendo do
resultado da experiência com a droga sempre a posteriori, sempre
depois.... a melhor resposta para essa a
questão é também a mais prudente:
Sim
! Evita-se as armadilhas da droga não entrando nesse jogo.......vá
fazer outra coisa,
de preferência algo de produtivo (e que também seja gozante) e não
destrutivo.
É
isso !!! É o Isso!
* texto retirado da palestra proferida por Henrique Senhorini, realizada na sede ABRAPE, em 25/10/2012.